“Pra que rimar amor e dor?”, canta Caetano Veloso em Mora na Filosofia. O músico baiano provavelmente não estava falando de dor física, mas as mulheres que sofrem com dispareunia podem relacionar o verso com suas experiências sexuais. O problema pode ser causado por diversos fatores, entre eles a endometriose, mal que afeta cerca de 7 milhões de brasileiras em fase reprodutiva, segundo dados da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
A doença se manifesta de formas diferentes em cada paciente, exigindo tratamentos específicos. Entretanto, a dor na relação está entre os sintomas mais comuns. Ela acontece porque o assoalho pélvico fica cheio de nódulos de tensão. Algumas mulheres afirmam que a dor continua por dias – e até mesmo semanas – após uma única transa. Como a endometriose provoca diversas disfunções no corpo, acaba afetando a rotina e, claro, o desejo sexual.
A jornalista Caroline Salazar, 41 anos, não esconde que faz parte desse grupo. “Passei cinco anos seguidos tendo dores ao transar. Começou com um desconforto e piorou a ponto de ser uma mistura de ardência constante com a sensação de ter facas entrando na vagina. É insuportável e não melhora com remédio”, conta. Caroline foi a primeira a escrever abertamente sobre esse tipo de sofrimento no blog A Endometriose e Eu, em 2010. “Imagina jogar a mistura de sal com limão numa ferida em carne viva.”, descreveu em seu diário virtual na época. Seus relatos são fortes e fazem qualquer mulher entender o sofrimento da dispareunia.
Para as mulheres que sofrem com o sintoma, o sexo não é nem um pouco prazeroso e, não, isso não é coisa “da cabeça delas”, como muita gente sugere. “Nenhuma dor na relação é normal, principalmente se ocorrer de maneira recorrente. Pode significar algum problema clínico e deve ser investigada”, avisa o ginecologista Eduardo Ribeiro do Valle, do Rio de Janeiro, especializado em cirurgia ginecológica minimamente invasiva. Nesses exames, muitas mulheres descobrem que têm endometriose.
Hoje, um dos maiores desafios para diagnosticar a dispareunia ligada à endometriose está na cultura machista, que ainda acredita e repete que a relação entre sexo e dor é algo recorrente – e até comum – entre as mulheres. Mas atenção: a dor durante a relação sexual não pode ser naturalizada. “Sofro com os sintomas da endometriose desde minha primeira menstruação. Quando comecei minha vida sexual, sempre sentia dores, mas nunca pensei que poderia ser um problema de saúde. Achava que era normal. Infelizmente, a sociedade prega para a mulher que é normal sentir dor de cólica, dor na transa”, conta Michele Oliveira da Silva, 34 anos, servidora pública de Brasília.
Para além da questão física, com frequência a dispareunia traz consequências psicológicas para as mulheres. Por causa da dor, o desejo sexual delas é afetado – afinal, quem vai querer transar para sentir mais dor? E esse costuma ser só o início de um quadro psicológico perigoso. Muitas sofrem até encontrar o apoio necessário. Michele vivenciou o preconceito até dentro do consultório médico. “Antes de ser diagnosticada corretamente, relatei para a ginecologista as dores que sentia durante o ato sexual, e ela me perguntou se eu realmente gostava do meu namorado. Saí da consulta bem atordoada. Comecei a me questionar: ‘Meu Deus, será que eu não gosto dele?’. Mas não era nada disso”, lembra.
Além da falta de libido, muitas mulheres se culpam por não se sentirem aptas a suprir as necessidades do parceiro. E, em vez de abrir o jogo, se fecham ainda mais. Isso acaba gerando um ciclo vicioso complicado. “É comum essas pacientes desenvolverem problemas de autoestima e receio de se posicionar no relacionamento afetivo e sexual, o que pode levar, inclusive, a um quadro de depressão e distúrbios de ansiedade”, afirma a psicóloga Ana Rosa Detilio, especialista em saúde da mulher e em reprodução assistida pela Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA).
Muitas vezes os relacionamentos naufragam. Logo no início de sua vida sexual, a servidora pública e advogada Nathalia Veras, 31 anos, de Roraima, passou por essa experiência. “Nunca tinha parado para pensar nisso, mas meu primeiro namoro durou cinco anos e nove meses. Talvez não por coincidência, terminou poucos meses depois de começarmos a transar”, conta. “Eu me sentia culpada. Como não sabia que tinha dispareunia, achava que o problema era comigo, que eu não gostava muito de sexo com penetração. Chegava a falar claramente para meu parceiro terminar logo!”, lembra Nathalia.
Violência sexual
Embora Caroline, Michele e Nathalia tenham demorado a receber um diagnóstico de dispareunia e endometriose e, em consequência, a sentir prazer no sexo, elas consideram que foram respeitadas pelo parceiro ao longo da doença. Isso nem sempre é realidade numa sociedade em que muitas se veem obrigadas a transar, independentemente de sentir vontade ou não. “As mulheres foram educadas para serem passivas do ponto de vista sexual. Aprenderam a não reclamar, a se calar diante daquilo que o companheiro procurava. Por mais que elas estejam se posicionando de forma mais empoderada, ainda sofrem os efeitos desse passado. Até hoje vejo que algumas suportam essas relações durante anos, sofrendo caladas, se isolando, para não perder a oportunidade de viver um relacionamento estável”, afirma Ana Rosa.
A culpa de estarem doentes também recai sobre elas. “Muitas vezes acreditei que era a culpada. Achava que era coisa da minha cabeça, que eu é que não conseguia relaxar e curtir. Já senti muito medo de prejudicar meus relacionamentos por causa dessa dor. Sei de casamentos afetados por isso. Mas eu tive a sorte de ter um marido que foi capaz de compreender essa questão”, lembra Michele. Que fique claro: com dor ou não, mulher nenhuma tem obrigação de transar se não sentir vontade e, especialmente, se estiver sentindo algum desconforto – seja ele físico ou psicológico.
Quando falamos em violência sexual contra a mulher, num primeiro momento pensamos em caso de estupro ou de uso da força física no sexo, mas existem outros tipos. A pressão psicológica é uma delas. Muitas vezes isso acontece porque o parceiro não sabe que a dor na relação sexual é um sintoma de uma doença ou nem tem conhecimento dela. “Por causa do meu site, recebo muitas mensagens de mulheres que sofrem com essa pressão. Elas se submetem a esse tipo de violência com medo de perder o parceiro, têm receio de que ele procure outra”, diz Caroline Salazar. Com base nesses relatos, a jornalista elaborou um projeto para alertar os companheiros sobre a dispareunia, seus sintomas e a importância do apoio.
Caroline decidiu usar suas plataformas – que, uma década depois de seus primeiros relatos, acabaram se tornando a maior referência sobre a doença no Brasil – para criar a Campanha de Conscientização contra o Abuso Psicológico e Sexual da EndoMulher. “O objetivo é desmistificar essa dor e trazer o parceiro de mulheres com endometriose para dentro da discussão”, conta.
Ao seu lado
Os vídeos no YouTube, cards no Instagram e textos no site incentivam o diálogo entre casais. “A intenção da campanha não é acusar o companheiro, e sim trazê-lo para luta. O parceiro tem que saber que a dispareunia afeta a vida sexual da mulher e que não é por frescura, falta de amor ou de tesão que ela não quer transar”, afirma Caroline. Especialistas garantem que a cura vem mais rápido com apoio e que o parceiro tem papel importante no tratamento. “Cabe a ele, principalmente, entender que é uma dor real, importante e incapacitante. Que isso leva a mulher, muitas vezes, a evitar a relação sexual”, afirma o ginecologista Alysson Zanatta, especialista em endometriose que atende em Brasília. Outro benefício é tirar o peso da culpa das pacientes. “Não poder compartilhar ou não ser compreendida pelo parceiro gera sentimentos negativos tão intensos que levam à perda da autoestima”, afirma a psicóloga Ana Rosa.
Com o diagnóstico e o tratamento corretos, a perspectiva é que a endometriose se cure, juntamente com a dispareunia. “A cura definitiva pode ser obtida por meio da cirurgia laparoscópica, com reconhecimento de todos os tipos de foco da doença e a retirada do que for possível. Após o período de 45 a 60 dias da cirurgia, a paciente pode voltar a ter relações e vai notar que não sentirá desconforto”, afirma Eduardo, um dos especialistas nesse tipo de procedimento. Às vezes, o tratamento pode incluir mais de uma cirurgia e sessões de fisioterapia. Durante essa fase, o companheiro também faz diferença. “Chame-o para acompanhá-la nas consultas e exames. Isso mostra ao homem a realidade da doença e seus sintomas. E, claro, tende a aproximar o casal”, explica Ana Rosa.
Depois da cura física, vem a vez do processo interno, psicológico. Tanto a paciente quanto seu parceiro devem se dedicar a essa fase. E ter paciência. “Voltar a associar o sexo ao prazer pode ser um grande desafio para algumas mulheres, porque talvez elas tenham internalizado que transar vai gerar dor; então leva um tempo”, afirma ela. Dependendo do caso, é interessante buscar acompanhamento psicológico. “Será preciso reformular e refazer a vida sexual. Existem hoje terapias sexuais voltadas para esses tipos de sintoma capazes de dar suporte na recuperação de uma vida sexual saudável. E aí, de novo, o papel do parceiro será fundamental para essa evolução”, completa a psicóloga.
As pacientes entrevistadas para esta reportagem garantem que, depois do processo de tratamento e cura, a vida sexual delas melhorou. “Eu tinha dificuldade de ter relação dias seguidos. Isso mudou completamente”, afirma Michele. “Descobri que é possível sentir prazer no sexo. Mas não foi só isso, minha vida também mudou. Voltei a praticar esportes, ser mais feliz”, afirma Nathalia. Caroline, a criadora da campanha, reforça a importância do compromisso com a cura. “Não desistam do tratamento. Ele é demorado, pode dar trabalho, mas depois disso você ganha, sim, uma vida sexual plenamente satisfatória.” (Claudia)
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